Mais, não passa pela cabeça de ninguém andar a contar sinais que nunca significaram nada, como aliás se pode inferir de «um certo trabalhinho» (que valeu um doutoramento, sendo o mesmo muito pior do que vergonhoso!).
Mas (e porque as obras ficam com quem as faz), avançando explicitamente nas imagens seguintes, e naquilo que a elas tem estado associado ao longo dos tempos, alguma qualidade (significante dos sinais) determinou que por isso fossem usados repetida e enfaticamente durante séculos
E sublinhámos, porque as imagens seguintes a que nos referimos, desde a sua utilização num contexto de Antiguidade Tardia (na Villa Romana do Rabaçal - poderá dizer-se Paleocristão?), até ainda, ao uso que foi feito nas Arquitecturas (revivalistas) do Norte da Europa. Uma tão grande continuidade, de um emprego que perdurou e se fez ao longo do tempo, pode/poderá levar a admitir que o seu significado permaneceu compreensível até aos séculos XVIII-XIX e até mesmo ao século XX?
Não podemos responder, não sabemos, concretamente sobre as formas ou os Ideogramas empregues na Arte, particularmente na Arquitectura. Porém, para a Imagem a seguir essa mesma questão nem se põe:
Porque o facto da imagem existir com um texto associado, que é explicativo e complementar dos desenhos, é isso que traz até aos nossos dias este imenso conjunto de informações. Do qual se podem retirar ilações infindas. Ou, também, podem-se fazer analogias e estabelecer extrapolações para vários outros casos.
Imagem vinda do Liber Figurarum
Ler nas notas abaixo (em **) o que diz o Dictionnaire Critique d'Iconographie de Occidentale sobre a figura acima constituída pelos três círculos (em representação do Pai, do Filho e do Espírito Santo) empregues por Joaquim de Flora. Nessa citação notar ainda que são destacados os entrelaçamentos (os quais como também mostramos a seguir, foram sempre cuidadosamente «tratados»).
Como se percebe (1,2,3,4,5 e 6) foram retirados da imagem anterior, e ampliados, para melhor fazer notar o cuidado gráfico posto no seu desenho.
O mesmo se passando (já a seguir) no pavimento romano de mosaicos, onde - dadas as bordaduras criadas pelos círculos que as geram - essas molduras concêntricas ajudavam a destacar e a tornar visível cada uma das intersecções (e esta ênfase - sublinha-se - deve ser vista como uma retórica visual).
Ou, se quiserem, e como a historiografia em geral designa estas intersecções, diríamos que são técnicas para os entrelaçados, «carregando» nos seus contornos.
Certo mesmo é que estamos perante os chamados Entrelacs de muita bibliografia que existe (sobretudo em francês), sobre este tema, e a qual, quantitativamente falando, não é nada pouca.
Por isso, e interpretando estes sinais (abstractos mas altamente significantes) Mircea Eliade escreveu sobre Un Dieu lieur
Alguns séculos depois, e como no caso do túmulo de Egas Moniz também outras Arcas Tumulares tiveram círculos entrelaçados nalgumas das suas faces, e ou na tampa.
Neste caso sabemos que o desenho do painel frontal da fotografia - e isso é dito por Owen Jones na sua Grammar of Ornament - como sendo um padrão de origem bizantina.
A Arca acima pertence ao Panteão de Alcobaça, e aparece publicada por José Custódio Vieira da Silva em O Panteão Régio (Edição Min. Da Cultura/IPPAR).
Sobre a tampa desta arca já escrevemos noutros posts, por ser incrivelmente trabalhada e muito bonita. Feita a partir de um desenho que também está na obra de Isidoro de Sevilha (Liber de Natura Rerum)
Da referida fotografia retira-se um excerto para ampliar e evidenciar a dificuldade que este tipo de trabalho exigia
É que, quem desenha, quem esculpe ou quem grava; ou mesmo até quem faz tricots com torcidos; ou quem assente azulejos, por exemplo, todos esses sabem que é necessária a maior das atenções quando se está a planear, ou mesmo já a fazer o trabalho.
Do tipo atenção matemática, pois estamos perante padrões que obedecem a regras matemáticas, ou às alternâncias matemáticas do tipo par/ímpar; ou sim, não, sim , não.
Mas, muitas outras vezes, de alternâncias e regras bem mais complexas...
Por fim, vindo da Bíblia de Alcobaça, uma tabela (designada Tábuas de Concordância - relativa às concordâncias entre os 4 Evangelistas). Tabela que se serviu de formas arquitectónicas muito incipientes (mas ainda assim falantes) para separar as colunas de texto relativas a Mateus, Marcos, Lucas e João: O Tetramorfo
E aqui mais uma vez ampliado, para que os leitores vejam a importância (significante) que era dada aos entrelaçados:
Reparem como os arcos ao serem representados com cores, e padrões (rectângulos, ou pequenos cilindros), isso vai garantir uma maior visibilidade e um maior contraste nos locais dos entrelaçamentos.
Por fim, reparem ainda nas formas dos arcos e dos escudos, nas mãos dos «soldados-guardiões» das referidas Tábuas.
Essa formas em que pegam são mandorlas: a imagem que veio a ficar associada - com toda a força de um Símbolo - à representação do Espírito Santo
Conclusão (longa):
Ver é muito mais do que a imagem a formar-se no fundo do olho, na retina, ou a «avançar» pelo nervo óptico:
Ver é a percepção, mais do que o Olhar. Porque é preciso usar «equipamento intelectual» especifico!
Ou, vamos dizer deste modo: Que a massa cinzenta de cada um e o que ela contém (ou já foi inscrito no cérebro, nas diferentes fases de aprendizagem), que tudo isso exista, para se poder saber ler e um dia saber descodificar o que está à frente dos olhos.
Isto é, depois de termos o referido equipamento intelectual - toda uma plêiade de informações, já que o saber não ocupa lugar... -, talvez então possamos (e também os nossos leitores) ir mais longe na compreensão de uma temática que esteve na origem dos estilos arquitectónicos.
Foi o exemplo de hoje, começando pelos 3 círculos ou anéis de Joaquim de Flora, o que já se deixou no nosso post anterior.
E nesse (post) notar a frase (citação) de Copérnico na Carta que escreveu ao Papa Nicolau III. Dizendo que muitos usaram os "círculos orbitais" nas mais variadas situações (i. e., "para o que lhes deu jeito", dizemos aqui nós), utilizando-os como base dos esquemas que fizeram*.
Esquemas que numa primeira fase foram só isso; e, repetimos, para uma maior clareza:
Eles foram criados como esquemas de ideias, mas que mais tarde, essas imagens, ao serem colocados nas obras de arte, por vezes de um modo repetido/contínuo (formando padrões) se transformaram - e hoje vemo-los assim - em Ornamentos.
E sobre o Ornamento, também aqui esta palavra tem que ser explicada, pois não é por acaso, ou gratuitamente, que no Dictionnaire Critique d'Iconographie de Occidentale (dirigido por Xavier Barral i Altet, PUR, Rennes 2003) se diz o seguinte**:
"Historiquement, l'ornement n'est ni gratuit ni auxiliaire. Il est partie prenante de la signification de l'oeuvre qu'il s'agisse d'une architecture conçue comme «parlante» ou bien des registres peints des manuscrits, déclinant un riche répertoire d'ornements comme autant de jalons d'un discours symbolique. (...)" ***
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*E essa frase é:“…nevertheless I knew that others before me had been granted the freedom to imagine any circles whatever for the purpose of explaining the heavenly phenomena…”
**É também neste dicionário que na entrada Millénarisme se refere Joaquim de Flora e a importância que deu às imagens para explicar a doutrina cristã (ver op cit., na p. 567):
"Il affirme de façon explicite que les mystères du divin peuvent être compris mieux en figurae qu'en paroles."
E mais adiante, explica ainda o Dictionnaire Critique d'Iconographie de Occidentale:
"La figure avec trois cercles entrelacés, avec un segment central commun à trois personnes, montre parfaitemen le point central de la doctrine selon laquelle les Trois sont Un"
Note-se que é exactamente a primeira figura que está neste post
***Ver op. cit, p. 637. Sendo que a frase seguinte (que não se cita aqui, agora) refere autores como George Hersey e Oleg Grabar cujos contributos para a compreensão da Arquitectura Europeia antiga e da Arte Islâmica (antiga), respectivamente, são fundamentais para as mudanças em curso e a haver no futuro próximo na Historiografia da Arte